Recostados nas espreguiçadeiras de linho da famosa taberna Passerelis, os nossos heróis Alfamix e Mourarix afogavam as mágoas em cidra, recordando os nefastos encontros que tinham tido no recinto da feira de imobiliário de Palácios de Olisipo, imersos em meditações sobre as grandes injustiças da vida.
Escutavam deleitados uma ode cantada por Tonix Carreirix, um tenor muito famoso pelas suas actuações no Coliseum, trauteando as estrofes, enquanto apreciavam extasiados os movimentos contorcionistas das belas odaliscas de origem eslava que se iam descascando no palco, enredadas em volta de finas colunas de mármore.
“Cor gaudens exhilarat faciem” (Quem canta, seus males espanta)
- Esta vida está difícil, Mourarix… Com esta limitação de só podermos trabalhar com a pedra Gesturbix Graniticus, sem permissão para desenvolvermos a nossa arte em outras pedras nobres, como vamos poder subsistir só com o miserável soldo que nos dá o Governador Antonius o Africano? E como vou poder pagar a prestação mensal da minha villazinha T2 em Reboleirus, mesmo com as taxas da Romaborius a baixar? Já ando a reduzir na ração dos burros da minha quadriga Fiatix, só lhes dou da de XCV octanas, sem aditivos, comprada nas grandes superfícies Tenda Nova…
- Pois é, Alfamix… E eu, que queria ir passar férias a Alexandria, para ver o farol… mas os sestércios não me chegam nem para ir a Conimbriga ver aquele novo pavimento que os feirantes-construtores andam a aplicar nas villas dos senadores! Este mês ainda não fui a nenhum banquete, tenho andado a sandes de sucedâneo de javali… – lamenta-se também Mourarix.
- Já viste bem? – insiste Alfamix. O Grande Imperador Pinochius Socretinus, que nem sequer é engenheiro digno desse nome, quanto mais arquitecto, fez aqueles belos projectos, e ninguém se admira… O nosso Grande Senador Salgadus Maximus já não os faz, porque a profissão é um risco, diz ele, mas a verdade é que já os fez… Os physicos exercem a sua profissão onde bem lhes apetece… Os escribas, então, nem é bom falar, ninguém os controla… Todas as artes são de livre expressão, menos a nossa! Só nós, pobres escravos arquitectos, estamos obrigados a esta exclusividade, só dá Gesturbix Graniticus, todos os dias a mesma coisa, sempre a suplicar ao Grande Servidorius que a pedra se movimente! Estou farto!
E acrescenta, em tom lamurioso:
- E mesmo que, como dizem as más-línguas, o Grande Imperador Socretinus substitua o Governador Antonius o Africano por outro, não vejo que a situação se altere para melhor…
- Ai sim? E quem viria? – pergunta Mourarix, curioso e esperançado.
- Um tal de Santanius Lupus, já foi em tempos nosso Governador de Província, não te lembras? Foi ele que importou toneladas de Gesturbix Graniticus, conluiado com a cortesã Bonapartius, a quem deu os direitos de importação… Antes disso só trabalhávamos em Gêpêélóx em pó… Bons tempos!
- Pelo Grande Arquitecto Alvar Altus, temos de fazer alguma coisa! - explode Mourarix. Queres que resolva isto ao tabefe, Alfamix? Começo pelos senadores e só paro quando esborrachar o nariz a Sua Maioria Absoluta o Imperador! E depois fazemos um grande banquete, com a ajuda dos feirantes-construtores, que eles até se pelam por javalizinhos no espeto…
- Realmente, temos de acabar com esta discriminação! Ou o Governador nos compensa, nem que seja em cinzéis, para martelar só em Gesturbix Graniticus, ou nos autoriza a projectar em qualquer pedra… Mas isto só lá vai com uma dose muito grande de poção mágica de persistência! - desabafa Alfamix.
- Boa, também quero! – exclama Mourarix, entusiasmado com a ideia…
- Só uma colherzinha, Mourarix, porque tu caíste dentro do caldeirão da poção, quando eras pequenino… Vamos ter com o druida Pêdêmix, e convencê-lo a cozinhar uma sopa que nos dê forças para levar a cabo esta árdua tarefa!
E saíram da taberna, dispostos a dar novo rumo à vida…
Estrategix aguardava-os pacientemente cá fora, onde tinha ficado a fazer companhia ao escravo eunuco que controlava as entradas. Não sendo um cão-guia, era-lhe vedado o acesso ao recinto de diversão circense, mas não arredava do sítio, de orelhas arrebitadas, na esperança que lhe coubesse alguma sobra de chicha do rodízio. Além disso, não perdia pitada de tudo o que os nossos amigos congeminavam…
- Vês como este cãozinho é inteligente, Alfamix? Ficou aqui, onde mandei, fielmente à nossa espera! – exclama o ingénuo Mourarix.
- Não sei não, Mourarix, cá p’ra mim “qui cum canibus concumbunt cum pulicibus surgent” (Quem com cães se deita, com pulgas se levanta) – responde Alfamix, que já desconfiava que aquela mal disfarçada idolatria lhes iria trazer amargos dissabores.
E montaram na quadriga, partindo velozmente (não sem antes se certificarem da inexistência nas redondezas de alguma patrulha de legionários de controlo de consumo de cidra), em busca do elixir milagroso…
Foi na sequência de todos estes eventos que temos vindo a relatar, que o druida Pêdêmix elaborou a famosa poção mágica da persistência, permitindo a Alfamix e Mourarix ganharem uma extraordinária força resistente, iniciando a longa marcha de inversão do establishment no sentido do efectivo reconhecimento do livre exercício da arquitectura aos arquitectos olisiponenses.
“Fata viam inveniunt” (O que há-de ser tem muita força).
Mas isso é outro conto…
Hoje em dia, os arquitectos da CML, orgulhosos descendentes dos irredutíveis heróis Alfamix e Mourarix da antiga Olisipo, vêem a sua actividade ser devidamente ressarcida pelo facto de a exercerem em exclusividade para a Câmara, a qual contribui também para as suas quotizações para a Ordem dos Arquitectos.
E os que prescindirem dessas exclusividade e compensação são autorizados a exercer livremente a sua profissão.
Factos estes tão verídicos como os restantes desta história…
4 comentários:
Consola-te NUMEROBIS que vais deixar de martelar no Gesturbix Graniticus e vais passar a martelar também no Portalix Autarquicum.
E pode ser que o Antonius o Africano venha a bater com a cabeça nas paredes pelo mal que tem feio a Alfamix e Mourarix
Tenho pena que a história tenha terminado...
Quero aqui deixar o meu agradecimento pessoal ao Grande Numérobis pela sua criatividade e imaginação que tanto nos fez rir e por vezes pensar um pouco.
O meu (nosso) muito obrigado.
Caro Arquitecto, isto foi só o intróito...
A vitória é difícil mas é nossa!
Muito obrigado ao Grande Numérobis.
Bem pensado, bem escrito e bem divertido.
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