É estranho, mas é esta a sensação com que fiquei ao ler o Editorial do J.A 240 assinado por Manuel Graça Dias: “Será que o homem é bipolar?”
Cerca de um terço do Editorial é dedicado aos Arquitectos Funcionários Públicos. E, verdade seja dita, concordo plenamente com tudo aquilo que Manuel Graça Dias escreve. Eu próprio não queria acreditar: afinal, sempre existe um Arquitecto chamado Manuel Graça Dias!
Infelizmente, muito do que tenho visto escrito pela mesma pessoa é tão diferente disto, que eu passei a chamá-lo de “Manuel Dias sem graça”. Será ignorância minha, com toda a certeza, (pois não sou seguidor assíduo da sua actividade) mas nunca tinha visto uma única linha escrita por Manuel Graça Dias sobre esta temática.
É bom e reconfortante reconhecer neste texto, o verdadeiro Manuel Graça Dias. Aqui vos deixo a parte do Editorial que se refere aos Arquitectos Funcionários Públicos.
“Por outro lado, um mais ou menos popular estereótipo julga conseguir enquadrar a figura do arquitecto a trabalhar para o "Estado"; negando-lhe qualquer hipótese de "liberdade", classifica-o muito depressa: burocrata, miudinho, submisso a "chefes". Nunca tendo "projectado", apareceria sempre mal disposto e recolhido atrás de uma alta pilha de papéis, vigilante de RGEU, provavelmente vingativo, talvez corrupto... O contrário da situação do arquitecto considerado "liberal": o funcionário amarrado a uma rotina, a um horário, a um salário, a uma cadeira, a uma secretária com um montão de processos e clips.
No entanto, existe um enorme potencial de liberdade neste posicionamento, no trabalho de quem, dedicado à causa pública, pudesse estar completamente livre do poder económico, dos marketings imobiliários, das negociatas com terrenos, do tempo dos empreiteiros, dos "estudos de mercado", da cupidez de promotores desobrigados de atender as causas de todos, apenas auto-centrados no lucro ou no prestígio pessoais; e este "arquitecto-funcionário" adquiriria, então, um papel de charneira, na ampla mediação, entre o que pudesse ser a pressão económica e um desenho de todos, para todos.
Brasília é o exemplo maior de um desejo assim; ainda que compreendendo o erro — por excesso de "liberdade" ou escassez de tempo -, a generosidade poética do desenho de Lúcio Costa/Oscar Niemeyer e todos os outros, à época, também, funcionários do Estado brasileiro, procurou cumprir com honradez e nobreza as "funções que lhe foram confiadas". Brasília foi erigida num tempo recorde, com os salários do sector público a bastarem-se enquanto honorários de toda aquela informal estruturação produtiva.
Para este arquitecto-funcionário, tão prestigiantemente representado, encontramos o heróico retrato de certo robinhoodismo, o concentrado objectivo, mesmo, do uso da liberdade.
Infelizmente, é hoje uma desvalorizada variante: tempos que vivemos, décadas de obsessivo consumo mercantil e individual arrasam com um riso quase sempre boçal esse lugar teimoso, só aparentemente quixotesco, onde a independência se poderia manifestar plena.
(Não estariam, no entanto, isentos de outras pressões que lhes fizessem vacilar a independência, os mais devotados funcionários: pressões políticas, do aproximar das eleições, da perversão da busca de mais-valias para a autarquia, dos compadrios partidários.)”
Perante isto, é caso para perguntar: O que fez a Ordem dos Arquitectos para defender e desenvolver o “enorme potencial de liberdade neste posicionamento, no trabalho de quem, dedicado à causa pública” teria “um papel de charneira, na ampla mediação, entre o que pudesse ser a pressão económica e um desenho de todos, para todos.”?
E, por fim, meu caro Manuel Graça Dias, nem imagina como eu próprio me sinto mais uma variante desvalorizada, arrasada por risos quase sempre boçais, que me inibem e proíbem o acesso a uma independência que poderia e deveria ser plena.
2 comentários:
Querer saber o que faz a Ordem para defender quem se dedica à causa pública? Eu digo-lhe: apoia publicamente o projecto no Largo do Rato, sem que par tal tenha feito alguma consulta aos seus membros.
Sem querer por em causa o bom-nome dos colegas que o projectaram, fico com uma ‘meia’ certeza: se fosse eu ou você a fazer aquele projecto, em vez de ser apoiado, ainda se arriscava a um processo disciplinar e proposta de expulsão da ordem.
Brasília foi erigida num tempo recorde, com os salários do sector público a bastarem-se enquanto honorários de toda aquela informal estruturação produtiva.
Esqueceu o "caríssimo" Graça Dias que Brasília foi construída durante uma ditadura...
É pena que só durante as ditaduras se possam erigir obras mais tarde consideradas notáveis e adoradas por todos.
Coitadinhos dos ingénuos!
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