quarta-feira, 15 de julho de 2009

ALFAMIX E O COBRADOR DA TOGA PRETA

Era mais um dia de intenso trabalho na Coorte de Apreciação de Projectos de Palácios de Olissipo…

Alfamix e Mourarix entretinham-se com uma amostra de Gesturbix Graniticus, submetendo-a e movimentando-a repetidamente de um para o outro, num vaivém lento e fastidioso, quase em câmara lenta.

Desafiavam assim, em acto de consciente sabotagem, todas as orientações superiormente emanadas pelo Governador Antonius o Africano, através do Simpolis, édito que determinava que os pedregulhos teriam de passar a rolar rapidamente, sobre rodas, pelos corredores da Coorte, mesmo que isso implicasse o esmagamento de qualquer escravo mais incauto que se atravessasse no caminho…

Estrategix observava-os, sem conseguir alcançar o verdadeiro intuito da manobra, embora o instinto canídeo lhe fizesse sentir que ali havia marosca, e da grossa…

Tão distraídos estavam todos com a táctica dilatória (NR- atitude ainda em voga hoje em dia, com recurso às paciências informáticas…), que nem deram pela sorrateira aproximação de um vulto sinistro, coberto da cabeça aos pés numa toga preta, em atitude felina de caçador que se prepara para dar o salto de misericórdia sobre a presa…

A figura acerca-se pelas costas de Alfamix e Mourarix, pé ante pé, deixando apenas entrever um par de olhos semi-cerrados por trás do negro shador, em plena concentração premonitória do golpe fatal.

Nem Estrategix, embalado a coçar as pulgas de estimação, deu pelo funesto personagem.

- Ahá! – berra o profano figurante, aproveitando o factor surpresa num ímpeto bombástico. Com que então, arquitectos Alfamix e Mourarix, suponho?

Os nossos heróis, apanhados à traição, deram um salto monumental, adquirindo a branca tonalidade própria de um grande susto, em completo contraste com o negro da toga do diabólico intruso.

Estrategix deu uma pirueta no ar, mas conseguiu aterrar de pé, com as quatro patas no chão. Nada de espantar… era exímio naquela habilidade, fossem quais fossem as circunstâncias em que escorregasse naqueles caminhos deslizantes da Coorte…

- Vó… Vó… Vós quem sois, ó infame destabilizador de arquitectos? – gagueja Alfamix.

- Avé, por Belus Rodeius, vosso Amo! Apresento-me! Sou Quotamix, o Cobrador da Toga Preta, enviado da Grande Loja dos Arquitectos!

- Mau, mau… - suspira Mourarix, a adivinhar o pior…

- E o que pretendeis, para nos abordar em tão traiçoeira aproximação, pela pitonisa Cintrus Gomus? – inquire Alfamix.

- Venho assediar-vos, em nome da Loja! Não vos sentis em falta perante o vosso insigne patrono? Tereis por algum obscuro motivo olvidado o pagamento dos últimos dízimos à vossa plenipotenciária organização de classe? Tendes alguma reles justificação para tão ignominioso comportamento? – insulta o Cobrador.

- Bem, bem… vamos por partes! Primeiro, devido à crise de falta de projectos de Palácios, admito que possamos ter desleixado um pouco o regular envio de sestércios para a Grande Loja… – tenta contemporizar Alfamix.

- A Grande Loja não quer saber para nada das vossas lamentações, ó mendicante arquitecto! – desdenha o Cobrador. Sestércios, denários, de preferência áureos, venham eles! Eu não me chame Quotamix se não saio daqui com a bolsa cheia!

- Ai sim? – desafia Mourarix. E em troca, podeis dizer-nos o que tem feito a Loja para nos proteger das chicotadas do Governador Antonius o Africano? Sim, a nós, espezinhados escravos arquitectos, que somos obrigados a arrastar diariamente estes pedregulhos monolíticos de Gesturbix Graniticus, sem sequer nas horas vagas nos ser autorizado projectarmos noutras pedras! Vá, dizei-me, se sabeis…

Esfíngico, o Cobrador da Toga Preta continua, inflexível:

- Por Frankloidius Wrightius, julgais que a Grande Loja dos Arquitectos se digna perder tempo com tão insignificantes tarefas como garantir os direitos dos desdenháveis arquitectos da Coorte? O Seu superior desígnio é fazer publicar regularmente lápides esculpidas em indecifráveis hieróglifos, e zelar pelos altos interesses dos dinásticos agremiados do Seu Conselho…

- Ó Cobrador, “Pessimus surdorum is qui audire non vult” (Não há pior surdo que o que não quer ouvir) - insiste Alfamix. A Loja tem de entender as nossas dificuldades… O Governador paga-nos miseravelmente, e apesar de ordenar que O adoremos em exclusividade, recusa-se a compensar tal idolatria! Ainda se contribuísse com uns sestérciozitos para o dízimo que a Loja nos extorque mensalmente…

- E convenhamos que o dízimo, reduzidos como estamos à mais ínfima condição de escravos pagos pelo nível XXXI, assume as proporções de um vintízimo, quase trintízimo! – acrescenta Mourarix.

A lamúria era tal que até Estrategix, vulgarmente abstraído de tudo quanto não fossem as suas maleitas caninas e a necessidade básica de sobrevivência garantida pela magra dose mensal de ossos descarnados, e sempre pronto a acirrar todos os que se propusessem tramar Alfamix e Mourarix, estava de orelha murcha e olho remeloso, num ganir fininho, condoído com a humilhação sofrida pelos nossos heróis, e pensando “Estou quase solidário!”

Mas o Cobrador da Toga Preta fazia jus à sua formação granítica:

- Nada do que dizeis me comove, o dízimo é devido! A Grande Loja exige, obriga, impõe, ordena, intima, reivindica a vossa voluntária, generosa, abnegada e desinteressada contribuição…

Alfamix, em desespero de causa e em tom jocoso, não se conteve:

- E tendes a certeza que os nossos chorados sestércios serão geridos da melhor forma, ó Cobrador? Ouvi dizer, nos mentideros da Coorte, que um escravo da Loja se terá aboletado com um caldeirão carregado de áureos, e que mais ninguém lhes tinha posto a vista em cima… “Callidus est latro, qui tollit furta latroni” (Ladrão que rouba ladrão, tem cem anos de perdão).

- É exactamente por essa e por outras que todos os arquitectos deverão ter o dízimo em dia, incondicionalmente! Aconteça o que acontecer, a Grande Loja tem de manter o status! – arroga o Cobrador.

- Pois ficai ciente, sórdido Cobrador Quotamix! Da nossa bolsa não sairá nem mais um sestércio para a malfadada Loja dos Arquitectos, por Manolus Pinhus! – desabafa Alfamix em atitude irredutível, acompanhando a constatação com o celebrizado gesto dos indicadores em riste sobre a testa.

- Ai ele é isso? Então ficai sabendo, contumazes arquitectos, irei de imediato participar a vossa inqualificável atitude à Sociedade de Escribas Correius, Searus, Caldus & Associadus! – remata o Cobrador.

- Isso é uma ameaça, desprezível e ignóbil Cobrador? – despeja Mourarix, já roxo de raiva… Olhai que “Furor fit laesa saepius patientia” (A paciência tem limites).

- Pior que isso, ó vis arquitectos! Agora é que o Céu vos vai mesmo cair em cima da cabeça! E é já amanhã que será a véspera desse dia! E o menor dos males será o levantamento imediato de um sumaríssimo Processo Disciplinar! De seguida e antes que consigam recompor-vos, a Grande Loja dará entrada de um Processo de Injunção junto dos incompetentes Tribunais competentes do Império, com a subsequente Execução e Penhora dos vossos parcos bens! O Tribunal do Santo Ofício, comparado com isto, vai ser um brando bando de angélicos ingénuos! Tomás de Torquemada, Adolf Hitler, Pol Pot, vade retro! Chegou a autêntica, a única, a persecutória acção da ASAI-E! (NR- Arquitectos em Situação Anómala e Irregular – Extinção! Não confundir com outro organismo igualmente temido e odiado…)

- Co… co… como é? – balbuciam Alfamix e Mourarix, incrédulos.

- Sim, penhorar-vos-emos todos os vossos bens, até ao último sestércio, por Teixeirus Santus! Começaremos pelas vossas quadrigas Toyotix, com burros e tudo, e depois seguir-se-ão os vossos HomeCena com sistema quadrifónico de trompetas Samsungus, os vossos Sonyus com palco em pedra polida de alta definição, os vossos iPedra, tudinho! Nem o palacinho T2 escapará à sanha penhoratória da Grande Loja! Só nos daremos por satisfeitos quando vos virmos a mendigar nas pedreiras por um calhauzinho de reles mármore de Perus Pinheirus, onde mal podereis esculpir um mixuruco projectozinho de lavabo sem área suficiente para um quadrigazinha de rodas!

- Mas… mas… nada disso está ainda pago, por Constancius! – confessa o desalentado Alfamix. Foi tudo comprado com recurso ao crédito, financiado pelo BPP-I (NR- Banco Popular dos Papalvos do Império). Os poucos sestércios que lá tínhamos voaram, estavam investidos em Títulos do Tesouro Imperial, que como sabeis são produtos de alto risco! Aliás, um tão alto Risco que nem o nosso Grande Senador Salgadus Maximus quis neles investir, mesmo sendo arquitecto…

- Bem feito! O mais certo é irdes parar às galeras, a remar daqui até às Ilhas Caimãus… Com sorte, atracam numa qualquer off-chorus, se choramingarem pode ser que ainda recuperem alguma coisita… – remata o Cobrador Quotamix, laureando a douta sentença com um riso escarninho.

Foi demais. Como era de esperar, Mourarix passou-se de vez… O seu braço começou a girar qual ventoinha em excesso de rotações, e por efeito da força centrífuga, o punho assentou tipo torpedo naquele reduzido espaço de pele branca e olhinhos de carneiro mal morto visíveis atrás da burkha do Cobrador… Mourarix nem reparou que Estrategix já se tinha entretanto atirado à cauda da toga do travestido funerário, roendo-a impiedosamente.

Com tal bujarda, o desgraçado Quotamix descolou catapultado, com Estrategix afincadamente ferrado à ululante toga preta, sobrevoando Olissipo qual Batman da Antiguidade, indo no Aterro da Boavista aterrar…

Ou melhor dizendo, amarar…

De facto, o Cobrador da Toga Preta estatelou-se estrondosamente nuns banhos turcos conhecidos por Termas de Santus Paulus, mergulhando como um kamikaze numa pequena banheira (NR- artefacto cuja designação degenerou para o francesismo “bidet”, após as Invasões Napoleónicas), que tinha sido objecto de recente penhora a um infeliz, arruinado, e disciplinarmente processado arquitecto ex-associado da Grande Loja dos Arquitectos, e à volta da qual se encontravam reunidos os Membros do Seu Eminente Conselho, em sessão plenária de tomada de decisão sobre o destino a dar-lhe (ao bidé…), encharcando-Os copiosamente.

Estrategix sacudiu-se, e com a característica fleuma que se lhe reconhece, alçou a perna para cima do Cobrador da Toga Preta, salpicando indecorosamente os emblemáticos aventais dos membros da Grande Loja…

“Fallitur interdum, qui fallere solet” (Foi buscar lã, e voltou tosquiado)

3 comentários:

"O Arquitecto" disse...

Que posso eu dizer?

Obrigado, pela conribuição e valorização deste Blog!

O texto está espectacular! A imaginação e criatividade também! A mensagem é clara!

Pena tenho eu, que tantos não queiram ver ou compreender!
A persistência e a razão são a nossa força!

Mais uma vez, o teu texto prova de forma inquestionavel que há muito mais criatividade, imaginação e ideias no Deserto, em que nós vivemos, do que nos Oásis onde vivem os Salgados!
Será isto sinal de Ditadura?
Porque não falam os nossos colegas?

Estarão todos muito ocupados com os pedregulhos do "Gesturbix Graniticus"? Temos que lhes fornecer um pouco da tal "poção mágica"!
Só não sei como!

O Galego disse...

Eu já estava com saudades do Numerobis. As férias fizeram-te bem!
Sendo os arquitectos os afamados corruptos desta grande Cidade, como é que alguém tem a ousadia de os pôr a validar os dados do projecto para cálculo das taxas que aí vêm.
Agora é que vai ser! Vamos ficar ricos!

Anónimo disse...

Consultem o site http://transparencia-pt.org/ e digitem "Câmara Municipal de Lisboa". Vão perceber por onde se esvai o dinheirinho...bilhete de combóio Lisboa-Coimbra, ida e volta: 140 euros! Viagens por todo o mundo, de Montevideu a Istambul, aquisição de bilhetes para o concerto de Carlos do Carmo, and so on!
Assim, não há cobradores que resistam!